Foi assinado ontem no Vaticano, durante a visita do presidente Lula ao papa Bento XVI, o acordo Brasil — Santa Sé sobre o Estatuto Jurídico da Igreja Católica no Brasil. Sendo um tratado internacional, como tantos firmados pela Santa Sé, inclusive com países muçulmanos, disciplina os principais aspectos da relação da Igreja Católica com o Estado brasileiro.
O acordo, que tem por um de seus pilares a garantia do direito fundamental à liberdade religiosa (art. 2º), não confere nenhum privilégio à Igreja Católica em relação a outras confissões religiosas, mas apenas sistematiza e consolida aquilo que já constava de forma esparsa no direito brasileiro (desde o vigente Decreto 119-A/1890). Naturalmente outras confissões poderão firmar acordos similares, fixando suas relações jurídicas, mas sem o status de acordo internacional, já que não se tratará de acordo entre sujeitos soberanos de direito internacional.
Por seu lado, o acordo não afeta a laicidade do Estado, pois Estado laico, que reconhece o fator religioso como componente constitutivo das sociedades humanas, não se confunde com Estado ateu, que rejeita toda manifestação religiosa, fincado numa concepção materialista do homem e da sociedade. Nesse sentido, merecem reflexão as palavras do presidente Francês Nicolas Sarkozy, pronunciadas em visita a Roma em janeiro deste ano: “A laicidade não poderia ser a negação do passado. A laicidade não tem o poder de cortar uma nação das suas raízes cristãs. (…) É por isso que desejo o advento de uma laicidade positiva, ou seja, uma laicidade que, preservando a liberdade de pensamento, a de crer ou não crer, não veja as religiões como um perigo, mas, pelo contrário, como um trunfo”.
Os principais aspectos tratados no acordo dizem respeito à reafirmação da personalidade jurídica da Igreja Católica e de suas instituições, como a CNBB, dioceses, paróquias, prelazias territoriais ou pessoais, institutos religiosos, etc. (art. 3º); à cooperação do Estado para a preservação do patrimônio cultural, histórico e artístico de monumentos eclesiásticos, facilitado o acesso e respeitado o seu uso religioso próprio (art. 6º); à proteção aos lugares de culto e suas liturgias, símbolos, imagens e objetos cultuais, contra toda forma de violação, desrespeito e uso ilegítimo (art. 7º); ao ensino religioso, católico e de outras confissões, nos próprios termos do art. 210 da Constituição Federal (art. 11); ao reconhecimento dos efeitos civis, não só do casamento religioso, mas também das sentenças eclesiásticas em matéria matrimonial (art. 12); à imunidade tributária das pessoas jurídicas eclesiásticas (art. 15), etc.
Sob o prisma laboral, que é aquele que me afeta particularmente, como magistrado do trabalho, o acordo prevê a inexistência de vínculo empregatício, nos termos da legislação e jurisprudência trabalhista brasileira, entre padres e suas dioceses, bem como entre religiosos e religiosas e seus respectivos institutos (art. 16). O dispositivo trata também do trabalho voluntário (inciso II), disciplinado hoje, no Brasil, na Lei 9.608/98, e alerta para a possibilidade de desvirtuamento da própria instituição religiosa, caso em que o vínculo empregatício poderá ser reconhecido (inciso I).
Esse último aspecto é de real importância, conforme já nos manifestamos anteriormente: “O vínculo que une o pastor à sua Igreja é de natureza religiosa e vocacional, relacionado à resposta a uma chamada interior e não ao intuito de percepção de remuneração terrena. A subordinação existente é de índole eclesiástica, e não empregatícia, e a retribuição percebida diz respeito exclusivamente ao necessário para a manutenção do religioso. Apenas no caso de desvirtuamento da própria instituição religiosa, buscando lucrar com a palavra de Deus, é que se poderia enquadrar a igreja (…) como empresa e o pastor como empregado” (TST-AIRR 3652/2002-900-05-00, DJ 09/5/03). Trata-se, nesses casos, de verdadeiro desvirtuamento eclesial e vocacional, de triste, mas ineludível reconhecimento em alguns casos, pois uma coisa é viver do Evangelho, outra bem diferente é dele fazer mercancia.
Cabe agora ao Congresso Nacional ratificar o acordo, nos termos do art. 84, VIII, da Constituição, coroando o esforço do governo brasileiro e da Santa Sé, tornando-o direito pátrio consolidado, a dar maior consistência e segurança às relações Igreja — Estado, garantindo a laicidade positiva deste e o cumprimento da missão daquela em prol da fraternidade universal.
Fonte: Correio Braziliense – DF